Intervenção direta de Roma salva vice-chanceler real da fúria da Inquisição Espanhola, mas perseguição aos judeus continua
m processo inquisitorial com evidências suficientes para mandar dezenas de judeus à fogueira acaba de ser encerrado de maneira pouco comum na Espanha. Seu único réu, Alfonso de la Caballería, vice-chanceler do reino de Aragão, foi absolvido por interferência direta do papa Alexandre VI. O alto funcionário era acusado de organizar o grupo de judeus e conversos que, numa excepcional reação às perseguições sofridas, assassinou o inquisidor Pedro de Arbues há dezesseis anos. O Vaticano tem tentado impor alguma forma de controle sobre os abusos e o rigor sanguinário da Inquisição Espanhola, que responde diretamente à coroa, mas desde sua criação, em 1478, a temida instituição não sofria uma derrota desse porte. A reviravolta pode ter um importante efeito colateral: manter a Inquisição fora de Portugal por mais alguns anos, a despeito das pressões dos monarcas espanhóis em favor de um endurecimento ainda maior contra os judeus conversos em terras lusitanas.
Sem fornecer nenhuma justificativa sobre sua decisão, como é de hábito, o Vaticano encerrou com sua intervenção quase duas décadas de investigações do Santo Ofício espanhol, materializadas em mais de 500 páginas de depoimentos. O processo despertou grande atenção pela importante posição do acusado. Dom Alfonso, um dos maiores juristas da península, humanista de vasta cultura e braço direito do rei Fernando de Aragão, é um "cristão-novo", um dos milhares de judeus convertidos ao catolicismo, também conhecidos como "marranos", ou porcos na linguagem popular. Seu maior inimigo dentro da Espanha era ninguém menos que Tomás de Torquemada, o todo-poderoso inquisidor-geral e confessor particular da rainha Isabel de Castela, morto há três anos, em 1498. Não foi por acaso que dom Alfonso só alcançou a absolvição depois da morte de Torquemada. O inquisidor-mor conseguiu processar até um assessor importante do rei e talvez acabasse por levá-lo à fogueira. Fernando só impediu que dom Alfonso fosse encarcerado logo no início do processo.
O fervor católico do casal real, responsável pela perseguição sem precedentes desencadeada contra os judeus, convive com essas contradições. Tanto o rei quanto a rainha têm em seu círculo íntimo um grande número de conversos, às vezes tratados como patrimônio particular. "Todos os judeus do meu reino são meus, e minha é a obrigação de defendê-los, ajudá-los e mantê-los na justiça", chegou a dizer a rainha. "Isabel confia mais nos judeus batizados do que nos cristãos", comentou recentemente um visitante polonês, notando que as rendas das propriedades da rainha são administradas por conversos. Fernando del Pulgar, outro cristão-novo, foi secretário de Isabel até tentar abrandar a fúria persecutória que já levou à expulsão de grande parte da outrora extensa comunidade judaica na Espanha. Pulgar acabou rebaixado a cronista real – um castigo brando, comparado às torturas excruciantes e à morte na fogueira, reservadas a conversos menos importantes suspeitos de praticar sua religião em segredo.
Há muito Roma vem manifestando seu desagrado com os excessos dos autos-de-fé na Espanha. A absolvição de dom Alfonso foi uma vitória pessoal de Alexandre VI, o papa espanhol que conhece bem seus compatriotas, contra o fanatismo inquisitorial patrocinado pela rainha. O papa não engole o poder excepcional cedido aos monarcas espanhóis por uma inquisição sobre a qual detém a palavra final (veja quadro). Há alguns anos, tentou sem grande sucesso controlar os abusos cometidos nos porões de Torquemada, nomeando quatro assessores que deveriam abrandar os exageros mais flagrantes, como a aceitação incontestável de denúncias anônimas, a ausência de direito de defesa e os procedimentos secretos. A própria conversão forçada – e de outra maneira não pode ser chamada quando a alternativa é a expulsão e o confisco de bens – afronta os teólogos do Vaticano como contrária à doutrina cristã.
O clero ibérico tem outra interpretação, o que tem ajudado a rainha espanhola a estender a perseguição aos judeus e conversos para o território português. Para ceder a mão de sua filha Isabel ao rei dom Manuel II, ela obrigou o monarca a imitar o edito de expulsão dos judeus, promulgado em 1492 na Espanha. Sem muito entusiasmo, mas interessado na aliança política com seus poderosos primos espanhóis, dom Manuel I ordenou a expulsão dos judeus de Portugal em 1497. Logo em seguida, tentou dar um jeitinho português: promoveu com extrema violência a conversão forçada de todos que se encontravam em solo lusitano, na desastrada tentativa de manter no país os capitais necessários à empresa das explorações marítimas. Entretanto, quando os soldados começaram a arrancar dos pais judeus as crianças com menos de 13 anos para criá-las em lares católicos, o pânico se instalou. Muitos dos judeus mais endinheirados fugiram, rumando para o norte da África, os Países Baixos e até o império otomano, onde os seguidores de Alá demonstram mais tolerância religiosa do que a cristandade.
O confronto entre dom Alfonso de la Caballería e Tomás de Torquemada remonta a 1483, quando o dominicano foi nomeado inquisidor-geral de todos os reinos hispânicos. Com seu gestual teatralizado e sua oratória incendiária, o confessor da rainha lançou-se numa cruzada implacável contra os cristãos-novos suspeitos, real ou imaginariamente, de continuar a praticar sua religião original – sentimento complexo para o neto de uma judia conversa. Torquemada contou com o apoio entusiasmado dos monarcas, que se consideram escolhidos para implantar o cristianismo universal e assim propiciar a segunda vinda de Cristo. Fernando e sua rainha de ferro interpretaram o feito mais importante de seu reinado – a conquista de Córdoba, o último reduto árabe em território espanhol – como um sinal divino para redobrar esforços de modo a impor o catolicismo a todos os seus súditos. Nessa tarefa, nem os danos causados à economia pela perseguição aos judeus, com cidades inteiras despovoadas e setores produtivos desorganizados, os fez vacilar. "Antes de estabelecer a Inquisição nas cidades de nosso reino, refletimos sobre os prejuízos que poderiam causar para o artesanato e o comércio. Mas em nosso zelo por nossa santa fé colocamos o serviço do Senhor acima de nossos outros interesses", afirmou Fernando de Aragão.
De início, havia cristãos-novos que acreditavam ser possível receber dos inquisidores um atestado de autenticidade religiosa que lhes permitiria continuar a vida. O próprio Alfonso de la Caballería tratava a Inquisição como instrumento necessário à centralização do poder nas mãos do soberano. "Mantive várias negociações com judeus, mas sempre no exercício de minhas funções oficiais, tudo dentro dos limites da lei", defendeu-se ele no processo. Em particular, parece que fazia mais do que isso. "Ele me dissuadiu de converter-me ao cristianismo", declarou o comerciante Moses Haninai. "Nossas vidas dependiam de mestre Alfonso", diz o rabino Levi ben Shemtob, que após a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, veio viver em Portugal.
O vertiginoso crescimento da violência inquisitorial foi o motivo que levou um grupo de judeus conversos a assassinar o inquisidor Pedro de Arbues na noite de 16 de setembro de 1485, dentro da catedral de Zaragoza. Em resposta, Torquemada desencadeou uma onda repressiva violentíssima mesmo para os padrões da Inquisição. Em poucos dias, mais de 200 pessoas foram queimadas vivas sob acusação de envolvimento com o crime. A partir de então, muitos membros das mais ilustres famílias de Aragão e Navarra passaram a figurar nos autos-de-fé, incluindo o vice-chanceler Alfonso de la Caballería. Com poder quase ilimitado, Torquemada chegou a afrontar em público os próprios reis católicos, seus patronos e companheiros ideológicos, comparando-os a Judas em sua traição a Cristo. Depois da conquista de Granada aos mouros, em janeiro 1492, Fernando e Isabel passaram a discutir a sério a expulsão dos hebreus. Quando a notícia vazou para a comunidade judaica, ela reuniu a quantia de 30.000 ducados em ouro, oferecida aos monarcas sob pretexto de um prêmio pela conquista de Granada. Por breves momentos, os soberanos hesitaram. Foi quando Torquemada os abordou publicamemte com um discurso inflamado. "Judas vendeu seu mestre por 30 dinheiros. Agora o querem vender novamente, por 30.000", disse, agitando compulsivamente um crucifixo. O episódio precipitou o edito de expulsão, assinado em 31 de março de 1492. Desde então, cerca de 170.000 judeus foram obrigados a sair da Espanha.
Até a morte de Torquemada, mais de 2.000 pessoas foram queimadas vivas na Espanha. O número é alto, já que só seguem para a fogueira aqueles que negam a confissão a seus torturadores. A imensa maioria deixa-se "reconciliar" com a Inquisição no decorrer do martírio. Uns poucos, como dom Alfonso, escapam graças à sua posição social e, no caso, à providencial intervenção de Roma. São casos isolados. A regra é a perseguição generalizada, de um alcance tal que ainda haverá de se refletir em outros rincões da Europa cristã.
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